CRÔNICAS DO GÊNIO E DA DESTRUIÇÃO
Capítulo II - Estrangulamento
Cavador do Infinito
"Com a lâmpada do Sonho desce aflito
E sobe aos mundos mais imponderáveis,
Vai abafando as queixas implacáveis,
Da alma o profundo e soluçado grito.
Ânsias, Desejos, tudo a fogo escrito
Sente, em redor, nos astros inefáveis.
Cava nas fundas eras insondáveis
O cavador do trágico Infinito.
E quanto mais pelo Infinito cava
mais o Infinito se transforma em lava
E o cavador se perde nas distâncias...
Alto levanta a lâmpada do Sonho.
E como seu vulto pálido e tristonho
Cava os abismos das eternas ânsias!"
João da Cruz e Sousa
Com bastante espaço agora, só me resta continuar a carregar o fardo estafante de descrever a nuvem negra que passou sobre o destino do tartarianos. Não queria ser o Hermes de revelações tão ominosas, mas todo contador de histórias, em algum momento, chega nesta encruzilhada: conta o que foi que se passou como realmente foi, ou conta com subjetivismo buscando iluminar a essência verdadeira do ocorrido. Pense em um sujeito que cava rumo ao infinito: quanto mais fundo se enraíza, maior a distância percorrida em metros. Ponto final. Porém, seria essa descrição suficiente para fazer o leitor ver o que significa verdadeiramente cavar rumo ao perpétuo? Não é tal atividade a perfeita metáfora da vida?
Interrompo esse devaneio filosófico para continuar a narrativa. Os tartarianos são seres de muito poder, e os homens, tão atentos às benesses como aos prejuízos que a tarefa do domínio poderia trazer, planejaram minuciosamente sua conquista. É realmente uma desdita muito grande a dos tartarianos, só a má-sorte ou castigo divino explica terem de afrontar seres capazes de arquitetar o mal, gerando tamanha atrocidade.
Estou me alongando. Peço desculpas aos senhores por isso. Vou falar o relevante neste próximo parágrafo. É só que a escravidão é uma realidade que me enoja de tal forma, que até pensar sobre ela me causa desgosto. Contudo, se é pela necessidade de continuar esse capítulo que prometi relatar, me sacrificarei!
A morte teria sido fatalidade mais branda. Para evitar que se comunicassem "mimicamente", os humanos colocaram capacetes nas cabeças dos tartarianos, de forma que desde o nascimento não vissem um pingo de luminosidade. Lembrem-se que devido a evolução corporal-biológica própria dessa raça alienígena, que se constrói dependendo das experiências de vida, a 'máscara da cegueira' significou a criação de tartarianos cegos que não sabiam se comunicar. O elmo possuía um dispositivo que quando ativado gerava muita dor e dessa forma os tartarianos foram sendo educados como animais domésticos, na realização de atividades que interessavam aos 'donos'.
Destarte, para ficar bem esclarecido o processo, um tartariano filhote era comprado pelo Senhor de Escravos. Esse filhote era treinado, por exemplo, para carregar carga como um burro, sendo que após um certo tempo, o tartariano evolvia para o formato de um quadrúpede, coerente com o adestramento realizado. É fácil notar porque os tartarianos eram usados nas mais variadas atividades, aumentando a produtividade de empresários e se tornando um elemento essencial para a economia. E não é preciso ser um grande estudioso, basta ser um bom observador, para entender que quando algo é "economicamente indispensável", por maior injustiça que faça, sua manutenção é a lei, sua destruição, algum tipo de revolução.
As revoluções acontecem quando milhares se unem, embalados por um ideal abstrato que querem ver concretizado o mais rápido possível. Todavia, em nosso curto capítulo, cabe dizer que não houveram revoluções. O que existiu foi a previsão de uma. O imperador Piedosus, certo de seu domínio, agora não mais limitado ao próprio planeta, mas às outras dimensões, resolveu consultar-se com o oráculo de Sofled, apenas para garantir a certeza que tinha: seu controle era inquebrantável.
- Grande Oráculo de Sofled, diga-me diante de minha reza: haverá força capaz de destruir minha nação? Sagradas sejam vossas antevisões.
- Ainda não existe tal força, mas poderá existir. Dentre os filhotes de tartarianos, há um que atingirá o nível de Ryzykopos, que na língua da população original, seres ancestrais que existiram antes dos tartarianos, significa "Santo". Esse indivíduo, terá de passar por algumas provações, se vencê-las, é certo que será capaz de reformar o status quo que vige.
Piedosus não podia acreditar no que havia escutado. Sua autoridade totalitária, seu método de monitoramento, fracassara. Não! O Oráculo havia dito apenas "poderá existir"! Havia esperança! No outro dia, o Imperador mandou que fossem mortos todos os filhotes de tartarianos. E as águas do rio de sofrimento e miséria, em que afogavam os tartarianos, foram tingidas do vermelho lôbrego do infanticídio. Entretanto, um filho de tartariano sobreviveu! Não é a hora de entrar em detalhes do como, mas o fato é que sobreviveu, pois sua mãe "Não podendo, porém, mais escondê-lo, tomou uma arca de juncos, e a betumou com betume e pez; e, pondo nela o menino, a pôs nos juncos à borda do rio".
O que aconteceu com o pobre tartariano órfão? O que o Oráculo quer dizer por provações? Como a mãe conseguiu salvar o filho? Gostaria de poder responder essas perguntas aos senhores, creio porém, que só poderei fazê-lo no próximo capítulo.