Muitas vezes fico impressionado com a qualidade de certos textos e com as formulações gramaticais com que certas coisas são ditas. Textos, concretamente falando, não são nada mais que um conjunto de símbolos postos em sequência. Entretanto, seja lá como raios ocorre essa magia, às vezes esses símbolos postos numa certa configuração podem dizer muito mais do que possamos imaginar. Inclusive, é possível que um pequeno texto, por mais de um século, seja discutido constantemente, por apaixonados e por intelectuais, sem nunca esgotar o seu conteúdo.
É o caso de uma novela publicada em 1915, por Franz Kafka, considerada uma das maiores obras do século XX, denominada "A Metamorfose" (Die Verwandlung).
Nesse livro, que possui algo em torno de 100 páginas, conhecemos a história de Gregor Samsa, um vendedor que sustenta sua família (pai, mãe e irmã), e leva uma vida comum, até que um dia ele acorda e, depois de uma confusão inicial, percebe que se transformou num ser monstruoso, com a aparência de inseto e que não consegue falar, só imitir sons animalescos estranhos.
Diante desse fenômeno inexplicável, grande sofrimento recai sobre Samsa e sua família, que dependia dele financeiramente e agora passa a ter medo dele pela sua nova aparência. Gregor lentamente adentra num estado de depressão enquanto observa seus relacionamentos com os familiares se deteriorarem pouco a pouco.
É uma história triste e inusitada, capaz de trazer diversas reflexões sobre nossa condição humana, sobre a artificialidade das nossas relações e sobre os jogos de interesses que existem entre as pessoas.
E se você se visse transformado em um ser monstruoso, que causasse muito constrangimento e dificuldades (além de medo) na sua família, eles ainda te amariam? E seus amigos? Sua mulher continuaria casada com você?
A transformação em monstruosidade é uma metáfora interessante para muitas situações na vida. Quem nunca se sentiu como o peixe fora da água, a ovelha negra, o idiota ou o maluco em alguma situação qualquer?
É como se você, ainda que apenas por alguns segundos, se sentisse como uma abominação, como algo diferente de todos que estão ali e, todos te olham dessa forma esquisita. A depender da gravidade, nem te cumprimentarão mais na rua ou, ao saberem que você está no local, evitarão ir até lá. Você perceberá que se transformou em algo monstruoso, pelo menos em relação à eles. Essa é uma situação bastante difícil de lidar, pois quando você se torna um monstro-inseto para alguém, você perde a capacidade de comunicar com essa pessoa, se tentar falar com ela, tudo o que ela irá ouvir será uma série de grunhidos horripilantes.
Esse pensamento lembra muito o da música "Metamorfose Ambulante" de composição de Raul Seixas. Na canção, Raul fala sobre como ele prefere ser esse Frankstein, essa "metamorfose ambulante", que choca, que assusta, que é diferente de tudo o que é "normal/padrão", do que ser aquela pessoa acomodada, que reproduz os comportamentos sociais acriticamente, do que "ter aquela velha opinião formada sobre tudo".
Raul Seixas, em sua música, representa Gregor Samsa na cultura, na política, no debate público e sua preferência por ser assim. Mas o que a música não comenta (e precisa?) são as dores de ser o monstro, de sofrer violência e repugnação de seus próprios irmãos da pólis, irmãos de coração ou, quiçá, irmãos de sangue. Essa parte quem escreve é Kafka e muitíssimo bem. As duas obras, metamorfoseadas, como só os textos podem fazer, de alguma maneira inovadora, se completam. Apreciemos ambas, principalmente nos dias em que, ao olharmos no espelho, virmos refletido um inseto.
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